Festa na Sombra
Por que as mãos se apertam assim geladas?
E essas auroras sem sol? E essas noites sem lua?
Música, chora sozinha no escuro de minha inocência morta:
O Mal tem tanto poder quanto o Bem e quebrou
os lampadários de Deus nas almas angustiadas.
Peregrinos da sombra caminhamos
numa alegria contraditória e constrangida:
– esbanjamos energias em favor dos saciados.
Racionamos a fé entre vidas vazias.
Ah! Nunca seremos puros bastante para a fusão total.
Niké, perderás a cabeça, como sempre, ao fim de todas as batalhas…
Teu sorriso, Augias – Cresus, está oco de angústia.
Tua afirmação já não contenta ninguém: é insegura.
Senhor, que faremos de nossa ilusão estraçalhada?
Nós já sabemos tudo. Deciframos a esfinge de todos os tempos.
Não é a fé que encoraja: é o acerto na luta.
São os temperamentos ajustados.
É a liberdade de possuir ao menos o suficiente para
recusar o supérfluo, em honra aos mais dotados!
Festa na sombra de todas as horas, triste baile da esperança,
desmoranando-se em sonhos-pesadelos.
Amor? Glória? Infância? Onde a posse de nós mesmos?
Festa de ausências, de todas as ausências,
festa no escuro subterrâneo do desencanto e da dúvida.
De nada vale a luz da carne moça, que amanhece cansada,
com tanto BLACK-OUT nas almas, conscientes de sua orfandade.
Haydée Nicolussi
***
Não tenho o objetivo de fazer uma análise acadêmica, mapeando características da lírica da Haydée Nicolussi (1905-1970), e sim, apresentar o poema que dá título ao livro Festa na Sombra. A pretensão não é se prender a uma crítica feita pela experiência, mas um comentário feito pelo gosto pessoal deste leitor.
A poetisa é patrona da sexta cadeira da Academia Feminina Espírito-santense de Letras. Há um documentário produzido por Margarete Taqueti e Glecy Coutinho que mostra através de imagens e depoimentos a vida da escritora. Um pouco deste trabalho pode ser conferido no Flick: http://www.flickr.com/photos/chloee/page2/
Capa do livro Literatura Feminina Capixaba, do escritor Francisco Aurélio Ribeiro.
Nicolussi colaborou no Espírito Santo com as revistas Vida Capixaba e Canaã, entre outras, e foi considerada pelo crítico Francisco Aurélio Ribeiro como a primeira escritora de cunho modernista nas letras capixabas, ainda na década de 20. Quando residiu no Rio de Janeiro, trabalhou como tradutora, e foi presa durante a ditadura de Getúlio Vargas e companheira de cela de Olga Benário.
Haydée em seu único livro de poemas nos chama atenção pelo título: Festa na sombra, publicado em 1943. O livro é fruto da união de vários poemas que produziu durante toda a vida e, publicado pela Editora Pongetti, é dividido em três partes: a primeira, “Festa na Sombra”, a segunda, “Do Coração e da Carne”, ambas partes com 14 poemas, e a terceira, “Surgirá de novo o sol?”, com 21 poemas. A obra é diversificada com sonetos, elegias e, em sua maioria, de caracterização modernista.
No poema título do livro, a escritora nos convida para uma festa às escondidas, embaixo dos panos, e o leitor questiona:
“O que iremos comemorar?”
Nada, não há nada para ser festejado, pois, como ocorre na poesia supracitada, a festa é de ausências: de amor e da glória – e de “todas as ausências”. Na festa de Nicolussi, a “música, chora sozinha no escuro da minha inocência morta” em que “o Mal tem tanto poder quanto o Bem”. Não há sol na aurora, nem lua na noite, ou seja, estamos sozinhos no mundo, abandonados por deus, sem norte, nem estrela-guia, e como “peregrinos da sombra caminhamos numa alegria contraditória e constrangida.” Estamos sozinhos, sim, e conscientes de nossa situação de órfãos. Todas as almas estão apagadas, sofreram um black out, e resta o questionamento: “Senhor, que faremos de nossa ilusão estraçalhada?” Ora, agora, que “nós já sabemos tudo” sobre este mundo e temos consciência de que “não é a fé que encoraja: é o acerto na luta”, o que nos resta? A esperança e a juventude (representada pela “carne moça” no poema) já estão cansadas com tamanha descrença. A poetisa se apresenta como representante de uma visão de mundo angustiada pela indefinição da existência, não estamos preparados para saber o que está além, afinal, “nunca seremos puros o bastante para a fusão total.” O que nos resta? Se ainda questiona, leitor, o que resta é festejar “no escuro subterrâneo do desencanto e da dúvida.” Se nem a deusa da mitologia grega Niké, que representava a vitória, Augias, rei de Elis e Creso, rei poderoso da Lídia, conseguiram vencer o sorriso oco, ora, leitor, sejamos mais sombras desta festa!
Entre, e convide os amigos!